domingo, 9 de abril de 2017

Nas Buracas de Casmilo e por outros lugares secretos da Serra do Sicó

Nos principais maciços calcários, o processo de evolução cársica conduz muitas vezes à formação de paisagens peculiares. Os campos de lapiás, as dolinas, a fórnea da Serra de Candeeiros, são apenas exemplos, entre muitos, dessas paisagens cársicas.
Entre terras de Pombal e de Condeixa-a-Nova, a Serra de Sicó alberga várias dessas formações, de que as chamadas Buracas de Casmilo são as mais extraordinárias. Ora, as Rotas e Trilhos na Natureza agendaram para hoje uma incursão ao Sicó, com deslocação em autocarro, a que a minha "companheira de aventuras" se entusiasmou a participar, bem como o meu "mano" Zé Manel e a sua "companheira de aventuras" 😊. E assim, a umas madrugadoras seis e meia da manhã, estávamos a sair de Sete Rios, rumo ao Museu e às ruínas de Conímbriga.
O relevo calcário do maciço do Sicó representa um reduto paisagístico dominado por superfícies secas, com vertentes de rocha nua misturada com vegetação arbustiva mediterrânica. É na povoação de Casmilo, da freguesia do Furadouro (enquadrada pelo monte da Senhora do Círculo e pela Serra de Janeanes) que encontramos um canhão fluviocársico, cujas vertentes se abrem em concavidades de desenvolvimento horizontal - as Buracas. E estes foram precisamente os três pontos de interesse essenciais da actividade deste domingo: o monte da Srª do Círculo, as Buracas e a Serra de Janeanes.

Próximo de Conímbriga, 9 de Abril de 2017, 09h45 - Atravessamos o Rio de Mouros
Deixando as ruínas de Conímbriga para trás, pouco depois das nove e meia estávamos a caminhar para sul, rumo à Serra de Alconcere e ao geodésico do Cruto. Com a minha pequena arraiana e mais duas companheiras, rodeámos o geodésico pelo lado poente, por forma a minimizar os desníveis mais acentuados, enquanto o grosso do grupo subiu ao Cruto. Entre as aldeias de Peixeiro e Furadouro ... deu-se um "milagre": uma gentil enfermeira que passava de carro deu boleia às três senhoras, até à aldeia de Casmilo, evitando-lhes também assim a penitência da íngreme subida da Senhora do Círculo.

Na Serra de Alconcere, com o
Monte da Senhora do Círculo ao fundo
Aldeia do Furadouro, vista da subida à Senhora do Círculo
Durante uns 20 minutos, este peregrino peregrinou portanto sozinho. E à entrada da aldeia do Furadouro comecei a "escalada" para o topo da Senhora do Círculo, começando rapidamente a ultrapassar, na subida, a maior parte do grupo. Ao chegar à Ermida ... confessei que nunca me tinha acontecido "perder" três mulheres pelo caminho ... e "ganhar" entretanto mais de vinte!... 😊😉

Senhora do Círculo (406m alt.): 360º de panorâmicas em redor
Daquele alto avistam-se as serras do Buçaco e do Caramulo e mesmo a serra da Estrela. A poente, o olhar leva-nos a distinguir toda a costa, desde Ovar a Peniche, à Figueira da Foz e aos campos do Mondego. As vertentes vestem-se de tojo, de flores silvestres, de pedras cinzentas e milenares.
Supõe-se que a Serra do Círculo já fosse lugar de culto dos habitantes pré-romanos e romanos de Conímbriga e de outras povoações. A Ermida julga-se contudo datada do século XII ou XIV, derivando o nome, supostamente, do muro circular de pedra que rodeia o santuário. A imagem gótica da Virgem, que segura o Menino com o braço esquerdo e espalma a mão direita levantada em gesto de bênção, tem duas romarias anuais: uma no segundo domingo após a Páscoa, a outra na 5ª feira de Ascensão. Ainda hoje, quando a seca se faz sentir, o povo dirige-se para a Senhora do Círculo, subindo em procissão até ao cume, a entoar ladainhas de rogação, para implorar a chuva que tarda. Conta-se que não raras vezes, nessas ocasiões, a chuva acaba por vir brindar a penitência, antes mesmo do cortejo iniciar a descida da serra ... que nós iniciámos pela vertente sudeste, rumo à aldeia de Casmilo.

Descida da Senhora do Círculo para Casmilo
Na aldeia de Casmilo, que dá o nome às fantásticas formações do Vale das Buracas, ou vale dos Covões
As três mulheres que eu tinha "perdido" pelo caminho já tinham entretanto avançado da aldeia de Casmilo, onde a providencial enfermeira as deixou, para as Buracas, onde ganharam assim um bom descanso. Com o resto do grupo, desci pelo trilho que passa nas Buracas Pequenas; um trilho espectacular, serpenteando por entre um belo bosque e num permanente desce e sobe, até àquelas fantásticas formações geológicas, que correspondem ao que resta de várias salas de uma gruta existente no interior.

Descida do trilho do Vale das Buracas ... com rosas albardeiras a enriquecer a paisagem
No Vale das Buracas ... ou dir-se-ia que estávamos noutro planeta...
A formação das Buracas deu-se por abatimento da parte nuclear do monte, sendo que só as cavidades laterais, remanescentes da gruta que antes se ocultava dentro do monte, permanecem visíveis. E junto às Buracas ... lá estavam as nossas três "fugitivas", descansadas e fresquinhas... 😊

Passava já da uma hora, mas depois das fotos deixámos o vale e subimos agora para nordeste, rumo à Serra de Janeanes
Rumo à Serra de Janeanes, no horizonte desenhava-se a silhueta inconfundível de um moinho de vento; é o Moinho do Outeiro, ou de Janeanes. Como muitos outros que se encontram por esta região, é construído em madeira. Toda a estrutura roda sobre um círculo de pedra, apoiada num eixo central e em duas rodas também em pedra. Nos seus "Diários", Miguel Torga descreve bem o estado de degradação a que este moinho já tinha chegado há mais de 4 décadas:
O esqueleto de um moinho de vento a entristecer ainda mais esta paisagem desolada de paredes ressoantes, olivais mirrados e carrasqueiras agressivas. As rodas de pedra em que assentava todo o engenho, que assim podia ser adaptado a qualquer aragem, o ciclópico vigamento de carvalho que as unia, e as duas mós, suspensas no vazio, coladas uma à outra como maxilas defuntas. As velas voaram, o grão deixou de cair da moega, a fome mudou de rumo e da fábrica alada ficou apenas, à margem da estrada da vida, uma caricatura espectral. E é junto dela que penso noutros moinhos, que em vez do pão do corpo moeram pão do espírito, e de que só restam também carcaças semelhantes. Moinhos que, como este, tiveram destino, mas não tiveram futuro.
(Miguel Torga, Rabaçal, 4 de Março de 1973, in "Diário XI")
Janeanes à vista, com o seu
inconfundível moinho de vento
Por entre muros de pedra, a caminho de Janeanes
A povoação deve o seu nome a João Eanes, que terá sido um camponês a quem se deve o surgimento da aldeia. Assim, o nome da povoação deriva do nome do seu fundador e por consequência aquele monte terá adquirido de forma natural o nome de Serra de Janeanes.
E Janeanes foi o local escolhido pelos organizadores para o já merecido almoço, junto à Capela ... onde um pequeno painel de azulejos dá a conhecer que ali faleceu, em 1654, uma senhora que atingiu a bonita e rara idade de 125 anos!
Pouco antes das três da tarde, estávamos de novo entre muros de pedra, a descer para o vale da Ribeira da Várzea. O nosso destino era agora a aldeia de Poço, sempre com belas panorâmicas a leste, que terminavam, ao longe, na imponente Serra da Lousã.

Descida da Serra de Janeanes para nordeste
Junto à aldeia de Poço entrávamos no vale do Rio de Mouros ... e entrávamos também no Caminho de Santiago Português. Desde Lisboa, trata-se da 8ª Etapa, entre Rabaçal e Coimbra ... ou seja aquela que teria sido, em 2015, a 6ª Etapa do meu Caminho Santa Cruz - Santiago ... o caminho que o destino não transformou em Caminho! De alguma forma ... os Caminhos de Santiago vêm ter comigo ... e com o meu "mano" Zé Manel... 😊


O Caminho faz parte de nós ... e nós fazemos parte do Caminho...
E, em pleno Caminho de Santiago, pelas quatro e meia estávamos de regresso a Conímbriga, ao ponto de partida. Tínhamos percorrido 20 km por aqueles lugares secretos do Maciço do Sicó ... as três "perdidas" sensivelmente 16 km. Um belo domingo de Sol ... e de calor em excesso para a época do ano.

Conímbriga ... em fim de jornada
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3 comentários:

Helder Carvalho disse...

Caminhamos juntos nesta aventura....o prazer de fazer uma aventura com este amigo e companheiro é sempre enriquecedor e dá sempre uma vontade um dia ao ouvir-te falar de um tal caminho que levas na pele "Caminho de Santiago" de um dia ter o prazer de o fazer a teu lado.

Helena nunes disse...

Bem haja pela belíssima reportagem fotográfica e narração. É mesmo por isto tudo que vale a pena passar momentos com a natureza e gente saudável. Muito obrigada Helena Nunes

Orionis disse...

Com a excelente qualidade habitual, estes teus relatos são fabulosos. Revi a caminhada outra vez, mas desta feita com muito mais informação. Obrigado