domingo, 20 de março de 2016

Segredos e Mistérios da Marvana...

Quando, em Novembro de 2014, levei três "irmãos" às "minhas" terras de Vale de Espinho, a mana Cristina sentiu uma espécie de chamamento por uma serrania que se elevava no horizonte, a sul. A Serra da Marvana cativou-a, como que a dizer-lhe, como no romance de António José de Carvalho ... que se calhar já houve mesmo uma "Rosa da Montanha"...
"Na extremidade da Beira, que confina com a província de Castela, eleva-se a escarpada e medonha Serra de Marvana. Banha-a o rio Torto, que divide o nosso do reino vizinho; é sombrio o aspecto dela, coberta de urzes e medronheiros, e sombreada ao norte por espessa mata de carvalhos"
"A Rosa da Montanha", António José de Carvalho, 1871                            
Vale de Espinho, 19.03.2016
33 amantes das grandes rotas
partem para uma longa marcha...
Desde aqueles dias de Outono de 2014 ficou prometido que um dia levaria a mana Cristina à Marvana. E porque não levá-la ... na companhia de outros amigos e "irmãos" que as minhas "fragas e pragas" me têm trazido? A ideia foi tomando forma desde há meses ... e concretizou-se neste fim de semana em que o inverno se despede. Foi, também, a estreia da minha mana Paula nas terras de Vale de Espinho ... para além da minha "pequena arraiana", claro ... dos manos Zé Manel e Vítor ... e para além de 30 outros amigos e amigas, companheiros e companheiras de "aventuras", das montanhas do Atlas aos paraísos do Gerês ou de Somiedo!
Sexta feira ao fim do dia os candidatos começaram a chegar. Quase 20 ficaram instalados naquela que foi a Escola Primária de Vale de Espinho. A Junta de Freguesia cedeu os colchões, o espaço e os balneários, para além de ter mobilizado o transporte do grupo, no regresso, uma vez terminada a caminhada de sábado, em terras de nuestros hermanos. E às sete da manhã lá estávamos a partir, rumo ao Côa, mas principalmente rumo à barreira que tínhamos a sul: a "minha" Malcata!
As previsões meteorológicas eram um pouco ameaçadoras, mas o tradicional pacto da mana Cristina com S. Pedro protegeu-nos durante a maior parte do caminho ... ou não fosse ela a estrela desta caminhada J

A velha ponte "romana" de Vale de Espinho
O percurso seguido foi o da minha longa jornada do primeiro dia de Fevereiro. Uma hora depois da partida, estávamos nos 1049 metros do cume do Passil, lá onde a Beira Alta se debruça sobre a Beira Baixa ... lá onde comecei a falar ao grupo nos segredos e mistérios daquelas escarpas e colinas, dos vales abruptos que nos começavam a rodear. Histórias de contrabando, naquela raia de todas as dores e de todos os medos; estórias de lobos e de homens, de noites de tempestade, de luta pela vida; estórias do "meu" Xalmas, dos vetões e dos seus deuses; estórias dos feitos de Fernán Centeno, senhor de Peñaparda, que do seu castelo de Rapapelo, nas Torres das Ellas, assolou no séc. XV grande parte destas terras. Histórias e estórias perdidas na bruma ... contos aprendidos a uma lareira quase apagada...

E já descemos terras de Penamacor
Travessia da
Ribeira das Ferrarias
Passada a ribeira das Ferrarias e com sensivelmente 10 km percorridos, às 10 horas estávamos no alto da Ladeira Grande. A panorâmica começava a ser "aérea". Ao fundo, a nordeste, o "círculo mágico" das Mesas, as torres das Ellas, o "meu" Xalmas; aos nossos pés, as terras extremeñas de Sobrero e Pesqueiro; a sul, o morro de Monsanto a sobressair da serra de Penha Garcia, e, já a poente, a Gardunha e a Estrela. Estávamos já na cumeada norte da Marvana, ou Sierra de La Malvana, consoante o lado da fronteira. No meio da esteva e da imaginação, parecia-nos ouvir os homens de Narciso Flores, mais conhecido pelo Montejo, cujo bando aterrorizava as populações de ambos os lados da raia, nas primeiras décadas do séx. XIX. Diversos topónimos recordam-nos, ainda hoje, episódios ligados aos feitos daquele bando. O Alto de Los Enamorados, por exemplo, recorda os amores proibidos de Fernando e Beatriz, filhos de dois velhos fidalgos rivais. Mais a sul, deixámos à direita os profundos vales da Quinta do Major e da Moita do Padre, topónimo, este último, a recordar a tragédia do Padre Pedro Picado, pároco de Valverde del Fresno, assassinado às mãos do bando do Montejo, depois de ter casado em segredo aqueles jovens apaixonados.
"Fernando, com dois criados, resolveu acompanhar até Valverde o digno sacerdote. .... Passada a fronteira, o dia clareava, opondo-se o bom do padre espanhol à companhia de Fernando, que persistia em acompanhá-lo até Valverde. Do lado de Espanha, as serras descem, ainda cheias de penedias e de matos, até aos vales de Pesqueiro.
.... Os fora da lei, ao avistarem a horas matutinas o bom do padre, foram em sua perseguição ... No regresso, reuniram-se os bandidos em torno do bom padre .... e assentaram em executá-lo. Passaram com ele novamente a fronteira para Portugal, para que fosse atribuída a morte a portugueses e, quando em moita espessa e extensa  onde dificilmente poderia ser encontrado e serviria de pasto aos lobos, um tiro de bala, dado pelas costas, pôs fim à vida do santo sacerdote.
A falta do bom padre, em Valverde, fez suspeitar que tivesse caído nas mãos dos quadrilheiros. .... Os bandidos, com receio de entrarem em Portugal, foram descobertos, escondidos nos matos da encosta sul da Marvana, e, com grande comparência de pessoas das aldeias vizinhas, espanholas e portuguesas, enforcados na praça de Valverde. ....

O local onde foi morto tem ainda hoje o nome a recordar aquele crime, da «Moita do Padre».
"Caçadas aos Javalis", "Canto Nono", pelo Dr. Framar (pseudónimo de Francisco Maria Manso), Casa Véritas, Guarda
E ... a Marvana como objectivo!
E a nossa jornada foi prosseguindo, sempre ao longo da fronteira. Passado o Alto de La Mina, tínhamos pela frente os cumes da Marvana, à esquerda, já em terras de Espanha, e da Marvaninha, à direita, em terras lusas. Ali terão existido galerias subterrâneas do tempo dos mouros, mais tarde abandonadas e reutilizadas pelos bandoleiros para se acoitarem - as covas do Montejo. Nessas minas se terão guardado tesouros, em épocas diferentes, por povos e gentes diferentes. Ouro, riquezas, saques de bandoleiros, teriam sido transportados do fértil vale do Bazágueda para a planície extremeña; mas os tesouros da Marvana alimentariam para sempre lendas ... e a imaginação popular.
"Os lados são cortados perpendicularmente e o sombreado do fundo não deixa perceber a continuidade das galerias laterais. Conta-se ter caído para essa cova um cão, quando em corrida de caça, saindo depois crivado de mordeduras de serpente, a uma centena de metros, para o lado do rio. As galerias de saída foram aterradas pela quadrilha do Montejo e só ele lhe conhecia o segredo. .... E porque pessoa alguma, da actual geração, se atreveu a explorar essas inacessíveis covas, talhadas a pique, penetrando as entranhas da terra ... a lenda continua."
"Caçadas aos Javalis", "Canto Nono", pelo Dr. Framar, Casa Véritas, Guarda
Rumo ao cume da Marvana!
Às onze da manhã estávamos no cume da Marvana. São apenas 859 metros de altitude, mas a sensação é de estarmos no cume do mundo, pelo menos do mundo que nos rodeia. A vista percorre 360º em redor. A minha mana Cristina tinha respondido ao chamamento. Será ela ... a "Rosa da Montanha"? Mas quem é afinal, ou quem foi, a "Rosa da Montanha" do romance de António José de Carvalho? Bem, estamos em pleno século XIX. Um rapaz de haveres que caça na serra, de seu nome Eugénio, encontra por entre a urze e a esteva uma bela rapariga, por quem se apaixona imediatamente. Mas ... a galfarra diz-lhe ser filha do Montejo! O moço estremece, apavorado só de ouvir o nome do sanguinário bandido que assola as terras da raia sabugalense. O destino e as dificuldades conduzem-no a uma outra paixão, a de uma jovem contrabandista quadrazenha. Dividido entre dois amores, o romance acaba contudo em bem: os vilãos são mortos ou aprisionados, os cativos libertados das garras dos bandidos e Eugénio e Rosa casam felizes, prometendo amor eterno!

No cume da Marvana ... onde o mundo é nosso... J
Tal como em Fevereiro, do cume da Marvana havia que "mergulhar" para terras de Pesqueiro. O "mergulho", particularmente na parte inicial, não foi uma descida propriamente fácil ... e nuvens ameaçadoras prometiam verter as suas águas, que começaram a cair quando nos aproximávamos já dos primeiros olivais. Para as previsões que havia, S. Pedro foi contudo bastante clemente...

A vertiginosa descida da Marvana para terras de Pesqueiro
E assim descemos àquele vale fértil, onde tantas gerações de Vale de Espinho trabalharam na apanha e tratamento da azeitona. A velha Prensa lá continuava, triste e abandonada, no meio de uma selva de silvas. Outras histórias, outras gentes, outra época, mas tudo naquelas paragens relembra a luta pela vida das gentes de Vale de Espinho. Em Dezembro, a aldeia ficava despovoada de mocidade e não só; todos partiam para a apanha da azeitona, permanecendo e pernoitando em Pesqueiro por cerca de um mês! Algumas famílias viviam lá permanentemente, na Florida, nos Badagonais, em Carnicas, desenvolvendo os labores da produção do azeite. Mas o tratar o olival criava ocupação a muito jornaleiro: era o lavrar o solo, cortar os fieitos e o mato, limpar as oliveiras, "desmamoar", varejar a azeitona por grupos de homens, a apanha por ranchos de mulheres e o transporte nos animais para a Prensa. Ainda hoje muitos Valespinhenses têm propriedades em Pesqueiro.

E chegamos aos olivais de Pesqueiro ... com chuva...
A velha Prensa, triste e abandonada, no meio de uma selva de silvas
O almoço foi próximo da Prensa, ao abrigo das ruínas das casas que albergavam os "ranchos". A chuva, embora fraca, ameaçava ter vindo para ficar, mas felizmente deu-nos depois alguma trégoa, ao longo de um percurso que gradualmente iria inflectir para nordeste.

Ao longo dos olivais de Pesqueiro, a Marvana ia ficando para trás
Belos campos,
rumo ao Sobrero
Passadas as casas da Florida e de Barriche ... faltava-nos cruzar o rio Sobrero. Nascido na Toriña, junto à raia, o Sobrero é o mais caudaloso da zona, levando as suas águas para o Erges. O topónimo Sobrero nada tem a ver com sobreiros, que ali não existem. Parece antes derivar de "sobre el oro" ... o ouro da serra da Marvana! Baseados em velhas lendas que falam de areias auríferas e, até, de pepitas de dimensões razoáveis, da primeira metade do século XX chegam-nos memórias de quem andava ao "menério", percorrendo o vale de Sobrero depois das enxurradas, à cata do precioso ouro.
Lembrava-me bem de como tinha encontrado o Sobrero em Fevereiro ... e sabia que não podíamos caminhar sobre o ouro... J. Mas felizmente o curso do rio estava bastante mais baixo.

Passagem do Rio Sobrero
... sem ser sobre el oro... J
E a marcha prossegue rumo a Valverde del Fresno
Como não encontrámos ouro ... palmilhámos os quilómetros finais que nos separavam de Valverde del Fresno. A tarde até se compôs com algum Sol, que fazia brilhar as Ellas e San Martin de Trevejo, ao fundo ... mas a entrada em Valverde foi de novo molhada.

Ao fundo as Ellas e San Martín de Trevejo
5 minutos antes das 5 da tarde ... e entramos em Valverde
Umas cañas na Casa Laura ... e o autocarro posto à nossa disposição pela Junta de Freguesia de Vale de Espinho trouxe-nos de regresso, pela estrada de Navasfrias, Aldeia do Bispo e Foios. Banho, roupinha lavada ... e às oito horas esperava-nos o "manjar dos deuses" retemperador, no "El Dorado" dos amigos Quim e "Ramitos". E que manjar ... e que convívio ... e que saber Viver!

Uma manhã ... pelas Fontes Lares e o vale dos Urejais
Dia seguinte, domingo ... o "programa" incluiria uma caminhada mais pequena, desbravando (mais) algumas belezas de uma aldeia ... chamada Vale de Espinho. Eu tinha de levar o grupo ... ao meu "santuário" das Fontes Lares! E pouco depois das nove estávamos de novo a sair, por Castelo Velho e pelos velhos "Nheres" (Linhares).
Vale de Espinho, 20.03.2016, 9:10h
A chuva miudinha voltou a acompanhar-nos durante parte da "peregrinação" desta manhã. Mas é esta chuva, o nevoeiro, a muita água a correr no Ribeiro da Presa e a encharcar os terrenos, que alimenta os muitos musgos e líquenes que cobrem as pedras dos muros e os troncos dos carvalhos, transportando-nos para um reino mágico ... o reino da Natureza pura!
Acima já dos mil metros de altitude, fomos seguindo os velhos caminhos que já tantas vezes palmilhei ... até às Fontes Lares.

Seguindo as velhas bredas ...
... chegamos ao "santuário" das Fontes Lares
E ali, nas Fontes Lares, junto àquela água "divina", junto ao carvalho e ao freixo seculares, junto ao barroco "sagrado" e às ruínas da velha casa que um dia, há muitas Luas, ainda conheci de pé ... naquelas "terras de onde se contam velhas lendas, quase negras", como canta o Sebastião Antunes na sua e minha "Fraga" ... contei aos meus amigo(a)s e irmã(o)s as velhas lendas e estórias daquele lugar...! Falei-lhes da energia que emana do barroco "sagrado" ... mostrei-lhes a "sepultura" das minhas velhas botas, deixadas para a posteridade na ruína da velha casa que foi dos avós e bisavós da minha "pequena arraiana" ... da Compañeira da minha grande aventura da Vida!

Fontes Lares ... um "santuário" onde, da água às pedras
e às minhas velhas botas ... tudo fala e canta...
Entre amigo(a)s e irmã(o)s ... ocupámos o barroco "sagrado"...
Ao deixarmos as Fontes Lares, a chuva parecia ter vindo para ficar. Descemos à Có Pequena ... e dividimos o grupo em dois: quem quis regressar mais rapidamente, acompanhou a minha arraiana pelo caminho do Areeiro; aos restantes ... levei-os ao vale encantado da ribeira dos Urejais ... e senti-os sentirem-se num paraíso perdido...
Ao longo do paraíso do vale da Ribeira dos Urejais
Meia hora depois do meio dia estávamos de regresso a Vale de Espinho. Este fabuloso fim de semana estava a chegar ao fim. Mas só iria chegar ao fim depois de um belo almoço na "TrutalCôa", sobre os viveiros e frente àquela magnífica panorâmica da encosta precisamente dos Urejais.
Mais convívio, mais Amizade, mais Amor fraternal, mais alegria de viver ... mas era chegada a hora da despedida. Dolorosa, afectuosa ... agradecendo a todos e a cada um aquilo que todos soubemos construir nestes dois dias! Obrigado meus Amigos ... obrigado meus Irmãos! Até breve!

18:00h ... e o Sol estava-se a pôr sobre este fantástico fim de semana
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sábado, 12 de março de 2016

Via romana de Valhascos, PR4 Sardoal

Valhascos (Sardoal), 12 de Março de 2016, 10:00h
Para comemorar o seu 31º aniversário, o Grupo de Caminheiros Gaspar Correia escolheu o concelho do Sardoal, mais concretamente o percurso circular PR4, Via Romana, na freguesia de Valhascos.
Como habitualmente de autocarro desde a capital, às 10 horas estávamos a começar o trilho, passando junto à Igreja de Nª Senhora da Graça, do início do século passado. Por terrenos acidentados, encaminhámo-nos até à Fonte da Queixoperra. As águas destas fontes são, desde longa data, afamadas por serem curativas, próprias para diferentes maleitas; foram procuradas inclusive pela realeza, como a rainha D. Leonor e o rei D. Fernando. Encaminhámo-nos depois para as margens da Ribeira do Travesso, onde a presença de javalis é notória, pela quantidade visível de espojadouros.

Igreja de Nossa Senhora da Graça, Valhascos
Rumo às margens da
Ribeira do Travesso
x
O percurso seguiu depois na direcção do Casal da Graça, uma das mais interessantes estações arqueológicas do Concelho do Sardoal. Ali se encontram vestígios medianamente bem conservados de diferentes épocas, nomeadamente a eira onde almoçámos, achados de cerâmica do período romano e uma extensa calçada de aproximadamente 700 metros do período medieval.

Calçada medieval (via "romana" de Valhascos)

Casal da Graça: o local
do aprazível almoço
Mais adiante, passámos à Fonte dos Mouros. Também conhecida por Fonte da Torneira, conta a lenda que foi construída numa noite pelos mouros, que enquanto a construíam iam dizendo: "o galo canta, canta o amarelo. O galo canta, canta o pedrês; dá-me pedras, a duas e a três. O galo canta, canta o preto; com esse já não me meto". Nesta ladainha ... não terão conseguido colocar a última pedra, por várias vezes colocada mas que caiu sempre, testemunhando que o galo preto dá azar...

À saída do Casal da Graça
Fonte dos Mouros
Continuando, deparámos com a Capela de S. Bartolomeu, edifício de pedra tosca que se julga datado do século XVII, possivelmente associado ao Caminho de Santiago. Mas ... tínhamos o 31º aniversário do Grupo para comemorar. Antes das 4 da tarde estávamos de regresso a Valhascos, ao longo de um extenso campo de oliveiras seculares.

Capela de São Bartolomeu
Regresso a Valhascos, ao longo de um olival secular
Valhascos, de regresso
A comemoração do aniversário do grupo foi no restaurante do Parque Urbano de Abrantes, ou Parque de S. Lourenço, um belo espaço verde e de lazer às portas da cidade. E assim se passou mais um belo sábado, com o convívio da minha mais antiga "família" caminheira.

Parque de S. Lourenço, o
Parque Urbano de Abrantes

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